domingo, 15 de janeiro de 2012

curas espirituais

ESPERANÇA
João de Deus atende os visitantes na Casa de Dom Inácio. Na cadeira de
rodas, a menina alemã Lisa-Marie, 12 anos, levada pela mãe para Abadiânia

Abadiânia, cidade goiana distante 78 quilômetros do Distrito Federal, é desprovida de encantos. Não há cinema, teatro, sequer shopping center para entreter seus 13 mil habitantes. Mesmo assim, há mais de 30 hotéis no município e uma concentração de visitantes estrangeiros de causar inveja aos grandes polos turísticos nacionais. O poder de atração dessa localidade de chão batido e ar seco incrustada no cerrado brasileiro é um senhor corpulento, de roupas eternamente brancas e amarfanhadas, 1,80 metro e olhos de um azul profundo conhecido no Brasil por João de Deus. Ou John of God, para seu séquito de seguidores internacionais, que atravessam o oceano em busca de cura para seus males. Há 54 anos, João Teixeira de Faria, 69 anos, analfabeto funcional que nasceu em Cachoeiro da Fumaça (GO), filho de um alfaiate e uma dona de casa, caçula de seis irmãos, é um dos mais famosos e respeitados médiuns em atividade no mundo. Cerca de nove milhões de pessoas, segundo sua própria contabilidade, já se deslocaram até o interior de Goiás para se submeter a suas cirurgias espirituais, uma prática cada vez mais difundida no Brasil. Anônimas e famosas, dos mais variados quilates. O mais recente paciente estrelado é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em tratamento de um câncer na laringe.

São necessárias algumas poucas horas em Abadiânia para colecionar relatos de pessoas que mudaram suas vidas sob o impacto do encontro com João de Deus. Médicos renomados que largaram consultórios na Europa para se tornarem assistentes espirituais, executivas de alto escalão que viraram donas de pequenos estabelecimentos comerciais na cidade só para ficar perto dele. Além dos incontáveis relatos de cura de doenças – tumores, dores crônicas, paralisias... A saga do líder espiritual goiano já atravessou fronteiras e foi tema de programa da apresentadora americana Oprah Winfrey (“Você acredita em milagres?) e do canal fechado Discovery Channel, entre outros. Sua fama e seu poder ganharam dimensões continentais e são infinitamente maiores do que o local que ele escolheu para exercê-los. Discreto como ele.


EM AÇÃO
João realiza uma operação nas fossas nasais, uma das
intervenções mais comuns, ao lado das cirurgias de olho

O cenário onde João de Deus realiza suas cirurgias espirituais, ministra seus passes e recebe milhares de pessoas semanalmente (cerca de duas mil) é a Casa de Dom Inácio, uma construção azul e branca de mais de 12 mil metros quadrados que fica na rua principal da parte nova da cidade. Lá o médium atende três vezes por semana, às quartas, quintas e sextas-feiras, das 8h às 12h e das 14h às 17h. O interior da construção é adornado com imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora, Santa Rita de Cássia , Santo Inácio de Loyola e do próprio João de Deus, mas também há cristais e outros objetos holísticos. Para entrar na casa, é necessário estar vestido de branco. A entrada se dá pela secretaria, onde o visitante é orientado a preencher uma ficha com seu caso: primeira vez, segunda vez, revisão ou agradecimentos. Em seguida, é encaminhado a um pátio coberto, com cerca de 200 cadeiras de plástico, dispostas em frente a um palco, onde voluntários fazem a primeira prece. Nesse momento, recebe algumas orientações, como, por exemplo: “Os três medicamentos são sono (é importante dormir entre as 22h e 23h); alimento (não se deve comer somente pelo prazer) e pensamento (somos o que pensamos).

Pontualmente às 8h ocorre a primeira oração, composta de palavras meditativas seguidas do pai-nosso. Em seguida, o médium, também vestido com a cor oficial local, atende aos visitantes sentado numa poltrona. Filas de pessoas passam por ele, sem muito tempo para explicar seu caso. Recebem uma receita do medicamento passiflora – uma planta que teria efeito calmante, manipulada na farmácia da casa – e a indicação de voltar à tarde ou ir para a cirurgia espiritual. Intervenção que pode ser com corte ou sem corte. A escolha é do cliente. “Não é necessário fazê-las com corte. Tem gente que só acredita vendo. Mas são raras. A causa da doença está no espírito, com efeito no corpo”, diz João de Deus. As cirurgias mais comuns na Casa de Dom Inácio são as de olho e fossas nasais, mas o líder religioso faz todo tipo de operação, com e sem faca. Procedimento que causa desconforto entre os espíritas tradicionais, que não estimulam as cirurgias espirituais com corte. “A gente conhece a legislação do País sobre o assunto e não recomenda, mas reconhecemos que, em alguns casos, ela pode funcionar, pois há muitos médiuns que manifestam o dom da cura”, diz César Perri, diretor da Federação Espírita Brasileira.


CURA
Médico e professor da UnB, Ícaro Batista chegou à Abadiânia com
diagnóstico de câncer de próstata avançado. Anos depois, se diz curado.
“Estou novinho em folha”

Para as cirurgias sem corte, o paciente recebe o passe, uma espécie de transmissão de energia. E segue para a meditação. No caso de corte, João de Deus pega uma faca de cozinha, para a raspagem do globo ocular, e uma agulha ou pinça de pressão com algodão cheio de água fluidificada – água abençoada – para introduzi-la pela fossa nasal. As cirurgias costumam durar cerca de dois minutos, mas podem demorar até 15. O paciente não emite um gemido de dor e é encaminhado numa cadeira de rodas para o repouso. O psiquiatra Frederico Camelo Leão, do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos da Universidade de São Paulo (Neper/USP), tem uma explicação para esse fenômeno. Segundo ele, uma cirurgia espiritual pode ser, basicamente, um conjunto de transes. “Não é à toa que a operação só acontece depois de várias visitas do paciente, que vai se tornando cada vez mais receptivo ao que lhe for apresentado”, afirma. Isso esclarece a predisposição à hipnose, por exemplo, que tem força para eliminar a dor dos cortes. Mesmo tendo na ponta da língua a explicação científica, o médico reconhece a dimensão dessas curas espirituais. “Tem muita gente relatando melhora, é um fenômeno digno de ser estudado.” Há 1,5 mil leitos para descanso na construção. As pessoas são instruídas a voltar para a revisão após 40 dias. Se a recuperação foi a contento, recebem alta. Nesse momento, são instruídas a fazer todos os exames necessários para constatar a inexistência da doença. João de Deus é contra abandonar a medicina convencional. “De forma alguma é recomendado suspender a medicação prescrita pelos médicos”, diz.

Na maioria das vezes, só se submete à cirurgia com corte quem já frequenta a casa há algum tempo. Mas esse não foi o caso do fisioterapeuta holandês Sebastian Wawerek, 30 anos. Ele diz que toda a sua vida sofreu de sinusite, com os sinos bloqueados. “Estava de férias em Buenos Aires e um amigo da Ucrânia me falou dele; por isso eu vim. Pedi a operação visível, porque acredito que só assim ele poderia resolver meu problema. Estou respirando muito melhor”, disse o holandês, deitado em repouso com um algodão no nariz, por onde entrou uma pinça cirúrgica de 15 centímetros. Quatro dias depois, Wawerek ainda sentia os benefícios da respiração desobstruída. “Acho que será permanente”, acredita. O médico austríaco Zsolt Pap de Pestény, 67 anos, diz ter se livrado de um câncer de cólon. “Fiz 11 operações na Áustria, antes de chegar aqui quase morrendo. Em três meses me curei, não pretendo ir embora”, garante Pestény, que se aposentou no país natal e agora é voluntário na casa.


MUDANÇA
A administradora paulista Moema Vilar é dona do restaurante Alquimia e frequenta a
Casa Dom Inácio desde 2007, quando levou o namorado para se tratar com João de Deus

Na Casa de Dom Inácio é comum encontrar médicos que acreditam na cura através de João de Deus. Caso de Ícaro Batista, 62 anos, professor na Universidade de Brasília (UnB), que diz ter se curado de um câncer de próstata em estado avançado por meio do médium goiano. “Posso afirmar que se não fosse o tratamento espiritual não estaria novinho em folha”, afirma Batista, que desde 2005 passa quatro dias em Brasília e três em Abadiânia. Em junho de 2011, a médica dinamarquesa Charlotte Bech Lund decidiu investigar o fenômeno João de Deus. “Vim, porque muitos pacientes meus vieram, melhoraram e voltaram para concluir o tratamento comigo, mas sem remédios”, afirma Charlotte, que voltou ao Brasil para passar as três primeiras semanas de janeiro em Abadiânia. “Cheguei ao topo da carreira prescrevendo receitas e vendo os efeitos colaterais que os medicamentos causam. Aqui, com passiflora, as pessoas se curam. É algo transcendental”, diz a dinamarquesa, que engrossa as estatísticas da Casa Dom Inácio: 80% dos visitantes são estrangeiros.

Apesar de atrair profissionais de saúde, João de Deus não esconde sua mediunidade. Ele tinha 8 anos quando as primeiras manifestações teriam começado. “Demorou muito para eu acreditar nas coisas que via e sentia”, afirma. Só aos 16 anos diz ter aceitado sua missão, ao ter uma visão com Santa Rita de Cássia e seguir para um centro espírita em Campo Grande (MS). Depois, passou algum tempo com o médium Chico Xavier, a quem chama de “papa do espiritismo”. “Íamos em caravanas para o interior de Minas e Goiás”, diz. Foi, segundo ele, Chico Xavier quem lhe pediu para que não deixasse Abadiânia, apesar das perseguições que sofria na cidade, acusado de exercício ilegal da medicina. Em bilhete datado de 18 de setembro de 1993, Chico diz: “Prezado João, caro amigo, Abadiânia é abençoado recinto de sua iluminada missão e de sua paz.” Na época em que João de Deus sofria perseguições, a Constituição combatia o charlatanismo, o curandeirismo e o exercício ilegal da medicina. Atualmente, a nova Constituição, em vigor desde 1988, prioriza a liberdade religiosa, o que tornou a fiscalização das cirurgias espirituais mais complicada. “Hoje a vigilância é feita só quando alguém faz uma denúncia, o que é bem mais raro”, diz o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Emanuel Cavalcanti.


REPOUSO
Após a cirurgia, os pacientes são encaminhados para
o descanso. Há 1,5 mil leitos na Casa de Dom Inácio

João de Deus, alcunha recebida em 1977, realiza cirurgias espirituais e promove passes, mas se diz católico. Foi ordenado padre pela Full Life Fellowship, uma organização religiosa americana que reúne diversas igrejas cristãs. E seus seguidores afirmam que ele é acompanhado por 30 espíritos diferentes. Assunto vetado pelo médium. “Se alguém diz que incorpora essa ou aquela entidade, fuja. Está mentindo”, afirma. De todo modo, o ecumenismo reina na casa azul e branca da empoeirada Abadiânia. Para lá se dirigem pessoas de todos os credos, ávidas por aliviarem suas aflições ou apenas se aproximarem do líder espiritual. Caso da apresentadora Xuxa, que esteve no local para gravar um programa e acabou atendida por João de Deus. “Ele é um iluminado”, disse, à época. A galeria de famosos é invejável e intercontinental. Quem abriu as portas de Hollywood para João foi a atriz Shirley MacLaine, que declarou ter se curado de um tumor abdominal em 1991 por meio dele. A partir daí a fama do religioso goiano ganhou o mundo. Ele iniciou a construção de duas casas, uma na Alemanha e outra na Itália, e é convidado a operar, pelo menos uma vez por ano, em centros holísticos nos Estados Unidos, na Suíça e na Áustria.

O empresário Marcus Elias, controlador do fundo Laep Investiments e um dos donos da Parmalat, conhece João de Deus há mais de 20 anos, quando levou um familiar com câncer para ser atendido. “Ele se curou e fiquei tão impressionado com aqui­lo que sempre que me deparo com pessoas com diagnóstico terminal levo ao seu João”, diz. Elias coleciona histórias de suas idas à Abadiânia. “Vi paraplégicas que voltaram a andar, cura de câncer... Conheço pessoas notáveis, mas talvez o João de Deus seja a mais notável de todas.” Fundador do Comitê Científico para Investigação de Afirmações Paranormais, o americano James Randi olha com ressalva as pilhas de testemunhos sobre o médium goiano. “O problema é que se recorre demais aos pacientes para entender o fenômeno”, diz. “Claro que eles dirão que estão melhores ou curados.” O ator Marcos Frota chegou a ser assistente do líder espiritual. O encontro se deu em 1996, quando o religioso foi assistir a um espetáculo do circo de Frota, em Goiânia. “Nunca vi exploração. Ele é uma pessoa muito simples, tranquila e sem performance.”


CURIOSIDADE
A médica dinamarquesa Charlotte Bech Lund decidiu investigar o
fenômeno João de Deus atraída pela melhora de seus pacientes

Nos dias em que não atende, João fica em sua fazenda em Anápolis, distante 40 quilômetros de Abadiânia, com a mulher Anna, com quem é casado há nove anos. Tem nove filhos, de mulheres diferentes. Motivo de arrependimento para ele, pois gostaria de ter tido filhos apenas com Anna, com quem não tem nenhum. “Sou apenas um homem. E, como homem, também erro”, diz. Em sua propriedade há criação de galinha, porco e gado, além de plantação de arroz, feijão e soja. Também possui um garimpo em Nova Era, Minas Gerais, em sociedade com um empresário local. A Casa de Dom Inácio não lhe garante rendimentos. O médium não cobra pelo atendimento nem pelas cirurgias, apenas pelo medicamento passiflora – a caixa com 175 comprimidos custa R$ 50. A farmacêutica da Dom Inácio, Bárbara Saraiva, diz que os comprimidos de passiflora são os mesmos vendidos em qualquer farmácia. “A diferença é a energização que, aqui, os remédios recebem”, afirma.

A Casa de Dom Inácio tem área de descanso com vistas para um mirante, livraria, lanchonete, farmácia e sala de banho de cristal. Além da cirurgia, os visitantes também podem participar do banho de cachoeira, uma bica d’água natural a aproximadamente um quilômetro do prédio principal. A instituição mantém a Casa da Sopa, que distribui cesta básica, roupas e brinquedos. O gerente financeiro da casa, Hamilton Pereira, secretário de Finanças do município e ex-prefeito de Abadiânia, afirma que os gastos mensais da instituição giram em torno de R$ 90 mil. “Às vezes ele tem de tirar do próprio bolso para pagar as contas”, afirma Pereira.


VENDA
O médico não cobra pelo atendimento nem pelas cirurgias.Apenas pelo
medicamento passiflora – a caixa com 175 comprimidos custa R$ 50

Atualmente, a Casa de Dom Inácio emprega mais pessoas que a prefeitura local, que tem 436 funcionários. “Essa parte da cidade só existe porque João de Deus está aqui”, garante o ex-prefeito. O turismo espiritual inchou a região. O comércio está voltado para atender às necessidades dos visitantes, que precisam de roupa e calçados brancos para vestir durante a estadia, de um ambiente harmonioso nas pousadas e de alimentação especial. Dona do restaurante Alquimia, a administradora paulista Moema Vilar, 34 anos, frequenta a casa desde 2007, quando veio com o namorado, vítima de câncer na coluna. Viu o companheiro sobreviver mais dois anos e meio – ele morreu em 2009, aos 33 anos, com 11 pontos de metástase no corpo e pouca dor – e decidiu morar no município em outubro do ano passado. “Abri o restaurante porque preciso viver. Mas não estou aqui para ficar rica. Se fosse esse o objetivo voltaria ao meu antigo emprego na avenida Paulista”, afirma. O comerciante Falciney Claudino de Castro, também com 34 anos, tem uma loja de acessórios de cristais e roupas brancas. “Tem muita gente que compra o armário completo aqui”, diz. “Não sei o que será de Abadiânia quando João de Deus morrer. A economia da cidade vai para o buraco”, afirma o prefeito Itamar Vieira Gomes.

João de Deus, por sua vez, diz que está pronto para viver pelo menos mais 30 anos. “Eu quero chegar aos 100”, garante. Apesar de realizar curas, ele tem problema de coração. Já colocou três stents e, atualmente, tem tido febre. Nada que altere sua disposição. O médium tem viajado a São Paulo, a fim de atender o ex-presidente Lula. “Mas não vou falar dele. Já viu médico falando de paciente?”, diz. Sobre Lula, apenas garante que o novo amigo será presidente do Brasil novamente e afirma que está orando por seu restabelecimento.


DEVOÇÃO
A figura de João de Deus está nas paredes da Casa de Dom Inácio,
ao lado da imagem de Jesus Cristo, Nossa Senhora e alguns santos

Para quem crê na força de João, o poder de sua oração tem dimensões concretas. Caso da alemã Beate Obermeier, 45 anos, que chegou ao interior de Goiás pouco antes do Natal com a filha Lisa-Marie, 12 anos, numa cadeira de rodas. Há seis anos, a menina entrou em coma e quando voltou, acordou sem falar, ouvir, comer ou conseguir segurar o próprio pescoço. Em duas semanas de tratamento, passou a comer, a ouvir e até a desenhar. “Só temos a agradecer aos espíritos de luz que encontramos aqui”, diz Beate. Para a mãe que assiste à melhora da filha, não há dúvidas. Mas João de Deus sabe que, para cada Beate, há milhares de incrédulos. Para esses, tem uma resposta pronta: “Não sou eu que curo. Quem cura é Deus. Muitos não acreditam, poucos acreditam, e um número expressivo tem dúvidas. Mas recorro à manifestação de Santo Inácio de Loyola: ‘Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária; para quem não acredita, nenhuma palavra é possível.”


DEPENDÊNCIA
Abadiânia, perdida no cerrado goiano, orbita em torno da figura de João de Deus.
“Não sei o que será da cidade quando ele morrer”,
afirma o prefeito Itamar Vieira Gomes

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