Com receitas indígenas e ingredientes exóticos que vão muito além do açaí, estado levou chefs aclamados a se encantar pelos sabores exóticos do tradicional Ver-o-Peso
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Gabriele Gimenez, da
Wikimedia Commons
Ver-o-Peso, no centro histórico de Belém. Construído no século 19, o mercado reúne ingredientes típicos do Pará e se tornou rota de chefs nacionais e internacionais
São Paulo - Imagine uma feijoada em que, no lugar dos grãos, utiliza-se uma folha potencialmente venenosa se não cozida corretamente. Foi com um prato assim que o chef Ofir Oliveira “virou estrela em Paris”, como ele próprio gosta de dizer. Nascido no Amapá e criado em Bragança, interior do Pará, o caboclo viajou à capital francesa, em 1989, aos 39 anos, para trabalhar em um restaurante brasileiro.
Lá, apostou em seus conhecimentos e passou a servir o mais tradicional prato paraense, chamado de maniçoba. A receita, de origem indígena, leva folhas de mandioca-brava cozidas por sete dias (tempo necessário para a eliminação de um ácido nocivo), além de carnes suínas e bovinas. Com a introdução da “feijoada paraense” na França, o chef, que hoje viaja pelo mundo participando de eventos, ajudou a dar início a um processo que alçou o Pará à condição de destaque na culinária do Brasil.
Privilegiada por sua localização às portas da Floresta Amazônica, a capital Belém ostenta uma inspiradora pluralidade de ingredientes. Somada à influência de tradições indígenas, essa característica confere à cozinha do estado uma originalidade que levou chefs aclamados no Brasil e no exterior a se encantar pelos aromas e sabores exóticos encontrados no tradicional mercado Ver-o-Peso.
Por entre suas inúmeras barracas recheadas de frutas e alimentos coloridos já caminharam grandes nomes da gastronomia mundial, como os espanhóis Ferran Adrià e Juan Mari Arzak, sempre atrás de itens que fazem parte do dia a dia dos paraenses. Um dos “achados” prediletos dos visitantes é o tucupi. O líquido amarelo, extraído da mandioca-brava e alvo de um longo processo de cozimento, tem sabor ácido e marcante e é essencial em duas das receitas mais famosas do Pará: o pato no tucupi e o tacacá, caldo que leva ainda camarão seco, goma de mandioca e jambu. Este último, uma erva também conhecida como agrião-do-pará, causa leve sensação de dormência na boca ao ser consumido – e é outra coqueluche entre os grandes cozinheiros da atualidade.
Se Ofir Oliveira foi o primeiro a levar um pouco desses sabores a Paris, ele reconhece que o trabalho de outro chef, o paraense Paulo Martins, que morreu em 2010, foi crucial para fazer os ingredientes amazônicos viajarem ainda mais longe: “Ele foi o responsável por colocar a culinária do Pará na mídia”. Arquiteto de formação, Martins herdou da mãe a paixão pela cozinha e o comando do Lá em Casa, restaurante de comida regional que se tornou referência no país e no estrangeiro – com direito a reportagem no The New York Times, em 1987.
“Quando os chefs franceses Claude Troisgros e Laurent Suaudeau chegaram ao Brasil, no começo da década de 1980, e começaram a utilizar ingredientes daqui, meu pai viu que podia acreditar mais do que nunca na nossa gastronomia”, afirma Daniela Martins, de 34 anos, que hoje cozinha no restaurante da família. Ela e a irmã, Joanna Martins, organizam em Belém, todo ano, um festival dedicado a revelar os sabores do Pará para chefs de todo o país.
É com a ajuda da família Martins, aliás, que muitas casas do Sul e do Sudeste conseguem suprir sua demanda por matéria-prima amazônica. Por mês, as irmãs enviam meia tonelada de ervas, temperos, farinhas e, claro, tucupi, para faculdades e restaurantes de diversos estados. Entre eles, o aclamado D.O.M., do paulistano Alex Atala, um dos maiores entusiastas da cozinha do Norte. Em seu cardápio é possível encontrar, por exemplo, filhote com tucupi e tapioca. Apesar do nome, de pequeno o peixe não tem nada: é um dos maiores da bacia amazônica, podendo alcançar até 300 kg, e compete em popularidade com o quase pré-histórico pirarucu.
Com tanta projeção, o Pará tem revelado novos chefs. Aos 24 anos, Thiago Castanho já é considerado uma das mais interessantes promessas da gastronomia nacional. À frente do restaurante Remanso do Peixe, em Belém, ele prepara pratos com ingredientes que escolhe em suas visitas semanais ao Ver-o-Peso: “Não vou só pela comida, mas porque aquilo é um poço de cultura”, diz. Ainda em 2011, pretende inaugurar uma nova casa na cidade.
E o paraense tem atraído cada vez mais a atenção internacional, como a do chef e escritor americano Anthony Bourdain. Apresentador do programa de televisão Sem Reservas, ele percorre o mundo em busca de culinárias surpreendentes. Em suas palavras, a capital do Pará é “uma cidade perdida de maravilhosos e estranhos ingredientes que fazem o queixo cair”. Com a recente globalização da cozinha paraense, eles têm tudo para ficar cada vez menos estranhos e, por que não apostar: ainda mais maravilhosos.
De frutas e remédios
O entorno do principal cartão-postal de Belém revela uma abundância de aromas e sabores que só a diversidade amazônica é capaz de explicar. É no Ver-o-Peso que a variedade de ingredientes da pulsante gastronomia local expõe sua face mais enérgica – tanto quanto uma boa dose de açaí. Dentro do mercado de ferro do século 19, chefs, donas de casa e turistas encontram peixes desconhecidos da maioria das mesas brasileiras: filhote, pirarucu e tamuatá são exemplos.
Mas é do lado de fora, na feira livre, que a floresta exibe toda a sua criatividade. Biribá, bacuri, uxi e taperebá são algumas das frutas exóticas à mostra nas várias barracas, que vendem de tudo um pouco. Na seção de ervas, a oferta vai muito além do jambu, com “mandingueiras” ostentando poções para todos os males. Perto dali, refeições pra lá de reforçadas são preparadas pelas “boieiras”. O carro-chefe? Pirarucu frito com açaí e farinha-d’água.
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