Poder, corrupção e armas
Uma publicação joga luz sobre o obscuro universo do comércio global de armas — um dos mercados mais corruptos do mundo
Há 50 anos, em sua despedida após dois mandatos consecutivos na Casa Branca, o presidente americano Dwight E. Eisenhower fez um discurso hoje famoso em círculos militares do mundo inteiro. General do Exército, entusiasta do uso de armas como condição para a paz, ele nunca escondeu seu apreço pelo poderio militar americano.
Na ocasião, porém, demonstrou preocupação com um efeito imprevisto dos crescentes gastos com defesa e segurança nacional do país. “Precisamos nos proteger contra o aumento de influência indesejada, intencional ou não, por parte do complexo militar-industrial”, disse ele.
Como viriam a descobrir muitos governantes depois de Eisenhower, conter o avanço do poder e da influência da indústria bélica na política não é uma tarefa das mais simples.
Um dos motivos é que os países nunca pararam de se armar. Em 2010, estima-se que os gastos militares globais tenham alcançado 1,6 trilhão de dólares, um aumento de 53% em relação a 2000.
São quase 235 dólares para cada habitante do planeta e um montante que corresponde a 2,6% do PIB global. Somente o governo americano investe anualmente quase 1 trilhão de dólares em segurança nacional, incluindo um orçamento de defesa de mais de 703 bilhões de dólares.
Quanto mais armas vendidas, claro, mais ricas e poderosas se tornam as empresas que vivem de fabricá-las. Mas esse é apenas um aspecto da questão.
Mais preocupante que isso, porém, é a maneira como empresas, governos e grupos criminosos fazem circular armamentos mundo afora.
O comércio de armas, as relações intrincadas com a política global e suas consequências são tema do recém-lançado The Shadow World (“Mundo de sombras”, numa tradução livre), escrito pelo jornalista sul-africano Andrew Feinstein.
Depois de anos de investigações e leitura de material confidencial inédito, a que teve acesso em parte durante um mandato como congressista na África do Sul, o autor joga luz sobre as engrenagens de um dos mercados mais sensíveis — e menos regulados — do mundo.
Má reputação
Estima-se que a compra e a venda de armas sejam responsáveis hoje por 40% de toda a corrupção do comércio global. Tamanha façanha confere ao segmento uma posição entre os mais corruptos do mundo.
Mas isso não significa que seja menos organizado. Pelo contrário: em todo canto, o vaivém do mercado de armas segue regras próprias e repete padrões de maneira espantosa.
Uma de suas formas mais conhecidas, o mercado negro, é responsável, todos os anos, pela transação ilegal e secreta de um volume estimado em milhões de armas, em geral de segunda mão, adquiridas ou roubadas do espólio de países que atravessaram períodos de guerra.
Desse ramo de negócio vêm se beneficiando, ao longo da história, milícias e regimes como o Talibã, além de agentes intermediários, que costumam receber altas comissões.
Mas é outra modalidade, mais cinzenta, que seria responsável pelas consequências mais nefastas de um comércio de armas global pouco regulado. Trata-se do tipo de corrupção operada por governos e fabricantes de armamentos por meio de canais legais e oficiais.
Embora na prática a maioria dos fabricantes sejam hoje companhias privadas, suas negociações são quase sempre encabeçadas por representantes de Estado dos países que fazem parte do acordo.
É aí que a combinação entre o número reduzido de indivíduos envolvidos nas negociações, contratos de venda enormes (muitas vezes de bilhões de dólares) e blindagem oferecida por assuntos tidos como de “segurança nacional” permite níveis de corrupção e falcatruas sem precedentes, capazes na prática de passar por cima de embargos militares, tratados entre países e regulações internacionais.
Um dos episódios mais escandalosos relatados no livro é o que envolve a negociação Al Yamamah, um tratado de 40 bilhões de libras iniciado em meados dos anos 80 para a troca de armas fabricadas pela britânica BAE por petróleo saudita.
Não havia motivo aparente para desconfiar do acordo: a Arábia Saudita é um país pequeno demais para produzir armamento próprio; o Reino Unido precisava de mais petróleo. Mas, como Feinstein revela ser comum em negociações dessa natureza e magnitude, o acordo jamais sairia do papel não fosse mediante pagamento de propinas altíssimas.
No acordo, um esquema de caixa dois foi montado especialmente para beneficiar príncipes sauditas e agentes intermediários. Um dos contemplados teria recebido como propina um avião com lugar para 380 passageiros, além de mensalidades milionárias.
A prática seria confirmada anos mais tarde por Lord Gilmour, antigo ministro da Defesa do Reino Unido. “Ou você ganhava o negócio e oferecia propina, ou não oferecia propina e não ganhava o negócio”, disse ele em uma entrevista à BBC. “Ou, então, deixava França e Estados Unidos ficar com tudo.”
Mais do que denúncias de escândalos, o livro escancara as dificuldades de lidar com o problema da corrupção, em grande parte agravado pela complexidade de um esquema do qual fazem parte líderes mundiais, grandes corporações, bancos, transportadores, criminosos comuns e agentes intermediários.
O efeito prático disso é uma espécie de buraco negro legal, que contribui para tirar a responsabilidade dos envolvidos e, em boa medida, estimula novos crimes. Não que tirar o corpo fora represente algo novo nesse cenário. Basta recordar outra máxima militar: “Armas não matam pessoas. Pessoas matam pessoas”.
A praga das consultas a jato
Atendimentos médicos que não duram mais do que 15 minutos tornam-se frequentes, o que provoca o erro no diagnóstico e na prescrição de remédios. O que você pode fazer se tiver sido vítima dessa prática
Monique Oliveira e Luciani GomesA cena é cotidiana nos consultórios médicos: entre o bom-dia e o até logo dados pelo profissional, passam-se apenas 20, 15 e, às vezes, inacreditáveis três minutos. Quando muito, dá tempo apenas para falar dos sintomas mais aparentes, pegar na mão uma lista de exames a ser feitos ou de remédios a ser tomados. Para que servem e quando mesmo devem ser tomados? Difícil lembrar, já que as explicações foram tão rápidas que nem deu para memorizá-las como se deveria. Também é evidente que o médico não teve tempo para avaliar com a precisão necessária o que foi prescrito. Trata-se de uma realidade cada vez mais frequente, tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo. Inclusive em consultórios particulares, essas consultas, que mais se parecem com um drive-thru de lanchonete, são registradas. E isso contribui para as estatísticas judiciais que mostram aumento nos casos de erros médicos.
A banalização das consultas a jato é tão grande que levou a uma distorção. Hoje, ser atendido em 15 minutos é considerado um privilégio. Um estudo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, em São Paulo, deixou isso claro. Os pesquisadores acompanharam 480 consultas na rede pública e mediram, de cronômetro na mão, o tempo que cada doente passava no consultório. Logo em seguida, perguntaram o nível de satisfação com a consulta. Quem foi atendido entre 11,4 e 15 minutos considerou o atendimento excelente. Os que ficaram de 7,6 a 11,3 minutos acharam a consulta boa. Já os que permaneceram com o médico de 3,8 a 7,5 minutos consideraram-na regular e apenas os que ficaram de 0,1 a 3,7 minutos – ou seja, nem quatro minutos – acharam que foram mal atendidos.
Apesar dos efeitos nocivos das consultas-relâmpago, não há no Brasil uma regulamentação que determine o tempo mínimo que uma consulta deve ter. Há apenas um consenso entre os bons médicos de que é impossível fazer uma avaliação correta do paciente em menos de 25 minutos. “Não se coloca o tempo de consulta no contrato porque se supõe que o médico agirá com consciência ética”, afirma Rogério Toledo, diretor do setor de Proteção ao Paciente da Associação Médica Brasileira (AMB). Mas como fazer isso na rede pública, por exemplo, na qual cada médico tem pelo menos 16 pacientes marcados para prestar atendimento em uma jornada de quatro horas? Ou seja, dedicar a cada doente escassos 15 minutos? Esse tempo, aliás, é usado como marcador de produtividade na rede pública, de acordo com o Manual de Auditoria de Atenção Básica do Ministério da Saúde. O documento serve para analisar o atendimento nas Unidades Básicas de Saúde e, segundo uma de suas fórmulas, serviço produtivo é aquele que atende em 15 minutos. Na rede conveniada, o parâmetro é que os profissionais atendam no máximo quatro pacientes por hora – ou seja, os mesmos 15 minutos para cada um.
O problema é que nem sequer a “regra” dos 15 minutos é respeitada. “Na rede pública há médicos que atendem em dois minutos, no corredor mesmo”, relata o médico Fernando Lucchese, diretor da Santa Casa de Porto Alegre. “Já ouvi colegas dizer que eram pressionados a atender em menos de dez minutos”, completa o proctologista aposentado Albino Sorbino, que durante anos trabalhou no Hospital do Servidor Público de São Paulo. A demanda na instituição pública comprometia o atendimento em seu consultório. “Eram, no mínimo, dois casos graves por dia”, lembra. “Não tinha como fazer essa consulta em 15 minutos e eu ficava sempre três horas além do meu horário.”
Pouco a pouco, começam a surgir indicativos dos danos causados pelas consultas rápidas. Um estudo feito pela Universidade de Ghent, na Bélgica, revelou um pouco das diferenças que ocorrem quando uma consulta é rápida demais ou acontece no tempo certo. Os cientistas analisaram 2.801 gravações de consultas realizadas em 183 hospitais da União Europeia e categorizaram as relações estabelecidas durante o encontro com o médico. Nos curtos, o tempo é dividido entre perguntas e instruções. Já nos longos, observou-se mais tempo gasto no levantamento de problemas psicológicos que podem estar relacionados aos sintomas e no fornecimento de orientações gerais ao doente. Este último, é claro, é o modelo mais ideal. “A consulta não é o momento de diagnóstico preciso”, explica o gastroenterologista Rogério Toledo, da AMB. “É o momento de se inteirar dos hábitos do paciente.”
Uma boa consulta envolve também a coleta do histórico do paciente, exame clínico completo, indicação detalhada de exames complementares, se necessários, e orientações terapêuticas baseadas em pelo menos mais de uma hipótese de diagnóstico. “Tarefa difícil para 15 minutos”, diz o infectologista David Uip, diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
Há outros prejuízos quando esse roteiro não é cumprido. O tempo mínimo compromete a relação com o paciente e pode levar o médico a somente atenuar os sintomas sem tratar a doença. “O profissional vira um grande fazedor de receitas”, diz Lucchese, de Porto Alegre. O atendimento rápido também compromete a interligação de sintomas com situações, já que o paciente apenas responde a perguntas ou é dirigido pelo médico. “E é só deixando o paciente falar que se podem fazer conexões com uma sintomatologia que inicialmente não estaria relacionada à doença”, diz o cardiologista Múcio Oliveira, diretor de emergência do Instituto do Coração, em São Paulo. “O atendimento rápido vai comprometer o diagnóstico”, diz Rogério Toledo.
Outros riscos são sair da consulta sem entender como tomar o remédio – e tomá-lo errado – ou receber uma prescrição incorreta. No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, 50% dos remédios comercializados são prescritos, dispensados ou usados de maneira errada. E, segundo especialistas, 49% dos erros são feitos pelo médico, na hora da prescrição. “O profissional faz um diagnóstico apressado, errôneo, e receita o remédio errado”, diz Fernando Lucchese. “O erro nas prescrições é uma consequência inevitável dessa consulta que não privilegia o olho clínico.” Além disso, a pressa eleva a chance de o paciente se submeter a exames desnecessários, sujeitando-se, por exemplo, a receber doses de radiação emitidas por aparelhos de imagem, sem que fosse preciso.
EXPRESSO
Sorbino trabalhou na rede pública de atendimento. Colegas se
queixavam de ser obrigados a atender em menos de dez minutos
A falta de coleta de dados e um histórico mal tirado podem levar inclusive à morte. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo indenizou uma família em R$ 30 mil por causa de um atendimento ruim em um hospital privado. Uma criança de 1 mês e 7 dias de vida, com pneumonia grave, voltou para casa apenas com uma prescrição de Novalgina. “Ela morreu de pneumonia porque o médico não coletou os dados suficientes na hora da consulta”, relata o advogado Vinicius de Abreu, representante da ONG Saúde Legal, entidade de defesa de pacientes.
Uma suposta falta de médicos poderia ser usada para justificar a pressa. Mas isso não é real no Brasil. Em outubro deste ano, os conselhos regionais de medicina registravam a existência de 371.788 médicos em atividade no País, um salto de 530% desde 1970, percentual cinco vezes maior que o crescimento da população. As razões apresentadas por entidades médicas para a disseminação da praga da consulta a jato repousam em outras esferas. Elas argumentam que a baixa remuneração dos profissionais é que provoca a necessidade de atender vários pacientes em um mesmo período. Isso fica mais evidente na rede pública, na qual os baixos salários não atraem muita gente. Como resultado, o número de médicos não seria suficiente para atender à demanda. “Não é novidade que faltam médicos nos serviços de urgência em hospitais públicos”, diz Aloísio Tibiriçá, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.
Na rede conveniada, que hoje já atende 9% da população brasileira, menos médicos se credenciam aos planos de saúde também por causa da baixa remuneração. Há planos que pagam menos de R$ 30 por consulta. A consequência: muitos profissionais atendem mais gente do que deveriam para conseguir um rendimento satisfatório. “O médico precisa manter o consultório, mas com os valores pagos só consegue isso aumentando os pacientes por hora ou cobrando no particular”, afirma Márcia Rosa de Araújo, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.
Essa realidade vem merecendo reação dos próprios médicos. Recentemente, verificou-se uma onda de paralisações entre os profissionais vinculados a convênios. Em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, os médicos Marco Leite e João Botelho decidiram fazer o contrário. Para mostrar à população como deve ser um atendimento impecável, reforçaram o time de profissionais em uma das Unidades Básicas de Saúde da cidade em um dia de atendimento. “Tivemos um reforço de oito médicos onde antes havia quatro”, diz João Botelho. E os pacientes finalmente foram atendidos corretamente.
É direito do médico pleitear salários mais altos. Mas os governos, os profissionais e as entidades que os representam devem ficar em alerta para não permitir que a baixa remuneração e a ausência de infraestrutura continuem a ser motivos para justificar a proliferação da prática das consultas expressas e suas consequências danosas aos pacientes. As entidades médicas deveriam também – inclusive para proteger os próprios profissionais – exigir das autoridades de saúde melhorias nos sistemas de saúde público e privado.
No âmbito particular, não há muita explicação para o fato de um médico receber o que quiser por uma consulta e atender seu paciente rapidamente. Uma das argumentações dos profissionais é a de que muitos trabalham em hospitais públicos ou conveniados durante o dia e acabam ficando com pouco tempo para atender à noite no consultório. Mas o paciente não tem culpa disso.
O que também contribui para a armadilha das fast consultas é uma formação médica baseada mais na técnica do que em um atendimento mais humano. Além disso, muitos médicos são oriundos de faculdades de qualidade ruim, de onde saem às vezes sem saber sequer como realizar um exame clínico correto. Atualmente, o Ministério da Educação supervisiona 17 cursos de medicina que obtiveram conceitos 1 e 2, considerados baixos, no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes. Entre elas estão quatro universidades federais.
Como não há, porém, uma determinação legal sobre o tempo mínimo de uma consulta, o paciente só poderá processar o médico quando houver um dano evidente e ficarem caracterizadas negligência, imprudência ou imperícia. “Não é porque a consulta foi rápida que o serviço foi mal prestado”, diz a advogada Joana Cruz, do Instituto de Defesa do Consumidor. No entanto, a curta duração da consulta pode ser um indício de que o médico agiu com negligência. “Nesse caso, o consumidor pode usar a curta duração como contextualização”, afirma o advogado Alexei Marqui, especializado em direito do consumidor.
Para isso é necessário que o paciente produza uma prova de que o tempo diminuto resultou em negligência. “Ele pode pedir um comprovante da duração da consulta para o médico”, orienta Marqui. Mesmo na ausência de prova, dependendo do caso, o juiz pode determinar a inversão do ônus da prova. Nessas circunstâncias, como o paciente é considerado leigo, a Justiça entende que seria mais fácil o médico produzir uma prova que o defenda do que o paciente oferecer uma prova que acuse o médico.
Mesmo sem um erro evidente, no entanto, vale registrar a queixa nas operadoras de saúde (para usuários de planos) ou no Ministério Público e secretarias de Saúde (pacientes da rede pública). O doente atendido por médico particular pode resolver na hora. A advogada especializada em saúde Rosana Chiavassa orienta só pagar a consulta depois do atendimento. “Dessa forma, se a pessoa considerar que foi mal atendida ou atendida rapidamente, é só levantar e ir embora sem pagar”, diz. Os indivíduos também têm a opção de recorrer à Justiça quando considerarem que a consulta expressa deixou consequências danosas à saúde.
A denúncia aos órgãos competentes pode ser uma boa opção para detonar um movimento em massa por consultas mais extensas. Foi a partir da pressão popular, por exemplo, que a Agência Nacional Suplementar de Saúde decidiu diminuir o tempo de espera para a marcação de consultas e exames por usuários de planos de saúde.
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