O susto que o mercado financeiro tomou, na semana passada, com o rebaixamento da nota de risco dos Estados Unidos, tem efeito limitado para o Brasil, que vive um quadro de visibilidade e previsiblidade inéditas, avalia Octavio de Barros, economista-chefe do Bradesco. Barros acredita que o País tem reservas suficientes para gastar contra a crise atual. E não se trata das reservas cambiais, de US$ 350 bilhões, colchão financeiro que o governo pode utilizar para proteger sua moeda. "Refiro-me a reservas de juros altos e compulsórios elevados", disse o economista à DINHEIRO. Do lado do setor privado, o Brasil também vive o privilégio de uma inércia positiva pela expansão de negócios. "Estamos vivendo, hoje, o mais difuso ciclo de investimento das últimas décadas, com cerca de 80% de todos os setores de atividade no em processo de investimento, desprezando em grande medida o cenário conjuntural.", diz Barros. "Estão olhando 10 anos à frente". O fato de o País exportar para os países nos quais a demanda é crescente também favorece o cenário brasileiro. "É um privilégio", lembra ele.
Leia a seguir a entrevista exclusiva para a DINHEIRO:
O senhor acredita que a França possa ser a bola da vez e ter uma redução de nota de risco, hoje em AAA?
Não. A França é “triplo A” merecidamente, assim como os Estados Unidos deveriam continuar sendo classificados com a graduação máxima de risco de crédito. Não é bola da vez coisa nenhuma. Isso não faz sentido, na minha modesta opinião. Vejo uma caça às bruxas dos mercados em relação à Europa, devido ao modelo de proteção social equivocadamente percebido como falido. Somente alguns países da Europa emergente tiveram, graças ao euro, um belo almoço grátis nos últimos anos. Mas isso não se aplica a nações maduras como a França. Reconhecer que ajustes fiscais são muito necessários na Europa não significa que os países europeus vão quebrar ou vão jogar a sujeira para baixo do tapete. Os governos europeus são mais sérios no enfrentamento de problemas do que muita gente supõe. Regimes de proteção social fiscalmente financiáveis reduzem substantivamente a volatilidade do PIB.
Quais são os riscos efetivos contra os bancos europeus, que têm sido alvo de 'ataques' em função do número de títulos púbicos em seu poder?
Não vejo qualquer problema sistêmico com os bancos europeus. Temos acompanhado isso com lente de aumento. Os que têm problemas, todo mundo conhece o nome, telefone e endereço. Estão se enquadrando graças à eficiente ação regulatória bancária européia. Estão vendo pêlo em ovo nos bancos europeus. Podem até encontrar um ou outro banco regional pequeno com problemas graves, mas nada sistemicamente relevante.O Banco Central Europeu (BCE) está operando bem nessa fase mais difícil de custo de captação alto.
Há riscos dessa eventual crise bancária contagiar os bancos brasileiros?
Hipótese simplesmente nula. Os bancos brasileiros são os melhores do mundo em termos de Basiléia, provisões e pesadamente supervisionados e isso não é de agora. São bastante conservadores. Discussões de bolha de crédito têm sido caricatas. No Brasil, desalavanca-se muito rapidamente. O prazo dos empréstimos é bastante curto.
Depois do rebaixamento da nota de risco dos EUA e da crise financeira que se seguiu, o mundo está dividido entre os que acreditam numa Grande Recessão ou num menor crescimento das economias desenvolvidas. Qual é a sua opinião?
Nada de grande recessão, mas sim um período significativo de crescimento modesto nos países desenvolvidos. Ninguém sabe qual é a faísca que vai recolocar em funcionamento o motor dos países desenvolvidos. Faltam vetores de dinamismo para as economias maduras. Coisa que não falta nos emergentes, que se destacarão ainda mais daqui para frente ganhando ainda mais “market share” no PIB mundial. A política monetária e a fiscal não podem fazer praticamente nada nas nações maduras. E a China, mesmo mantendo-se como principal locomotiva (o Brasil agradece), não poderá colaborar como no pós-2008.
Se houver Grande Recessão, o que acontecerá com o Brasil? Quais os riscos e oportunidades?
Grande recessão: não sei o que significa isso. Sinceramente, acho que estão meio que fabricando essa ideias de “grande crise”. Não está no meu radar nada muito diferente de um ciclo de uns dois ou três anos de ajuste profundo nas economias maduras que crescerão modestamente. Oportunidades sempre existem, sobretudo para um país como o Brasil que circunstancialmente estão muito mais arrumados apesar de todos os problemas pendentes.
E se houver um crescimento menor?
Crescimento menor é bastante lógico. Mas algo em torno de 3,5% e 4% de crescimento, nesse contexto, é show de bola. Além disso, o Brasil tem reservas acumuladas que poderá utilizar em um cenário de estresse. Não pense que estou falando de reservas cambiais. Refiro-me a reservas de juros altos e de compulsórios elevados.
Teremos efetivamente uma pressão menor sobre a inflação e maior manobra para redução de juros com a crise atual?
Parece-me consenso que, caso a crise seja pior do que se imagina, o mix de política econômica como resposta ao problema será antagônico ao verificado no pós-Lehman Brothers, que quebrou em 2008. Dessa vez, acho que o fiscal poderá até ser melhorado em termos de ajuste para que os juros caiam com mais profundidade e velocidade. Não vejo o real se depreciando muito, o que poderia dificultar esse cenário.
Qual é o efeito prático dessa irônica corrida para os títulos do Tesouro americano, depois da crise anunciada com o rebaixamento? De que modo a economia e o governo americano se beneficiam?
Ficou claro que o rebaixamento dos Estados Unidos não foi legitimado pelos mercados, apesar da volatilidade gerada. Temos como demonstrar que as agências de risco têm comportamento pró-cíclico, ou seja, sempre seguem os mercados. Dessa vez isso não ocorreu, o que trará possivelmente muitas reflexões e debates sobre o que De Gaulle chamava de “privilégio exorbitante” nesse caso de julgamento por parte das agências. A demanda por títulos americanos aumentou com o rebaixamento. O governo americano não se beneficia com nada nessa fase apesar do baixo custo de financiamento. Ele precisa urgentemente desenhar incentivos para que a confiança dos agentes econômicos volte.
O Brasil tem hoje um endividamento bruto em relaçao ao PIB de quase 60%. Os países europeus e os EUA têm acima de 80%, tendo alguns países mais de 100%. Já há quem aponte o 60% como o limite aceitável. É possível estabelecer um limite padrão?
Acho também que esse episódio do rebaixamento dos EUA traz um holofote definitivo para a responsabilidade dos governos em relação ao endividamento público. Considero que países como o Brasil, que têm uma situação de dívida como proporção do PIB bem mais favorável, deveriam zelar por esse verdadeiro patrimônio e, de preferência melhorar ainda mais essa posição fiscal. Isso, definitivamente, nos diferenciaria dos demais países pensando na necessidade de confiança global na economia para um crescimento sustentado. Acho que nosso nível hoje, de 55,9% de dívida bruta e de 39,7% de dívida líquida como proporção do PIB, causam inveja a dezenas de países, mas pode e deveria melhorar ainda mais.
Quais fatores determinam esse limite de endividamento?
Não existe regra para esse tipo de tema. Há um bom senso de verificar que há uma oportunidade histórica de se diferenciar que nos foi dado de presente. Suspeito que a opção por um fiscal austero prevalecerá nesses próximos anos, a despeito das novas pressões de determinados gastos com renúncia fiscal e com salário mínimo. O contexto global favorece isso.
O economista Jim O´Neill, do Goldman Sachs, avalia que o crescimento dos BRICs continuará, sempre apoiado no mercado interno. O senhor concorda?
Qualquer um concorda. Enquanto houver um excesso de oferta de produtos manufaturados no mundo puxando a inflação para baixo, não há muita escapatória. Tem que focar na demanda doméstica. Até a China passará a focar um pouco mais na sua demanda interna. O Brasil, além de ter um belo mercado de consumo em franca transformação, exporta para os países onde há demanda crescente. Cerca de 64% das exportações brasileiras se destinam a regiões que crescem muito. Isso é um privilégio nos tempos atuais.
Até que ponto a China será o contraponto do mundo, uma vez que ela continua equilibrando a demanda global, ao menos de commodities, área na qual o Brasil tem vantagens competitivas?
A China não vai exercer o contraponto como fez em 2008. É claro que continuará sendo a principal locomotiva, mas ela tem um monte de outras preocupações nesse momento. A China continuará sendo a salvação da lavoura e da mineração brasileiras. Na verdade, não apenas a China, mas a Ásia como um todo. Não podemos esquecer que, por sorte, o Brasil produz e vende exatamente aquilo que o mundo que cresce está demandando: commodities. É só fazer as contas, as commodities e as chamadas “quase-commodities” (matérias-primas levemente manufaturadas) representam atualmente 70,2% de todas as exportações brasileiras.
É possível manter um círculo virtuoso apenas com o mercado interno por alguns anos, diante das perspectivas de um futuro letárgico para os demais países?
O Brasil está vivendo hoje o mais difuso ciclo de investimento das últimas décadas. Esse é o grande vetor de crescimento brasileiro e também das pressões de demanda que temos. Cerca de 80% de todos os setores de atividade no Brasil estão em processo de investimento, desprezando em grande medida o cenário conjuntural. Estão olhando 10 anos à frente. Mesmo a política monetária está afetando pouco o investimento que é uma típica variável cíclica. As pressões no mercado de trabalho traduzem isso. Imagine praticamente todos os setores de atividade pressionando o mercado de trabalho e de bens ao mesmo tempo. Isso gera o chamado bom problema. Por isso, a opção preferencial do governo passa a ser a contenção do consumo das famílias via crédito e os gastos correntes do governo para que o investimento seja preservado. O mundo entendeu que mesmo com todos os problemas que temos de “custos de transação”, o Brasil adquiriu visibilidade e previsibilidade inéditas.
Como o senhor viu o anúncio da política industrial do governo Dilma, com o plano Brasil Maior?
Totalmente legítima e pertinente. Boas políticas com foco em investimentos e inovação. O custo fiscal do programa em termos de renúncia fiscal é relativamente baixo. Espero que seja possível mobilizar cada vez mais o setor privado que está salivando para entrar com tudo em projetos de infraestrutura. Vejo como prioritário que tenhamos uma enxurrada de concessões nessa área. Muita gente critica políticas industriais em função de experiências realmente não muito exitosas do passado, mas na situação atual, o mais ortodoxo dos economistas apoiaria a iniciativa. O setor industrial está redesenhando o seu modelo de negócios de forma substantiva. Precisamos urgentemente aumentar o estoque de capital e a produtividade da economia. Acho igualmente legítimas as medidas na área cambial, em que pesem alguns problemas operacionais que talvez precisem ser ajustados. Diante da penúria de oportunidades de negócios no mundo os capitais seguirão desembarcando aqui de mala e cuia.
A crise de 2009 favoreceu a maior internacionalização de empresas brasileiras, que foram às compras no exterior de empresas em dificuldades. Será que teremos uma nova rodada?
A internacionalização é um processo histórico que vai continuar. As empresas que exportam ou que pretendem voltar a exportar buscam uma presença ativa de marca em determinados mercados. As empresas brasileiras de médio e grande porte têm essa visão estratégica e tentem a avançar cada vez mais no exterior. Principalmente com o poder de compra fortalecido do real.